[D / 1]

Quer o sol matar meus sonhos todos,
os pálidos filhos de meus redutos de prazer?
Os dias tornaram-se tão calmos e ofuscantes.
A satisfação acena com visões nebulosas,
Abate-me o medo de perder a saúde,
Como se meu Deus eu fosse julgar.

Jakob van Hoddis

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[D 1, 1]

Criança com sua mãe no panorama. O panorama representa a batalha de Sedan. A criança acha tudo muito bonito: “Pena que o céu esteja encoberto.” — ‘Assim fica o tempo na guerra”, retruca a mãe. ■ Diorama ■
Portanto, os panoramas, no fundo, estão comprometidos com este mundo nebuloso; a luminosidade de suas imagens parece transpassá-los como cortinas de chuva.

[D 1, 2]

-II- paris ctônica

“Esta Paris [sc. de Baudelaire] é muito diferente da Paris de Verlaine que, entretanto, também já mudou muito. Uma é sombria e chuvosa, como uma Paris sobre a qual estaria superposta a imagem de Lyon; a outra é esbranquiçada e poeirenta como um pastel de Raffaelli. Uma é asfixiante, a outra arejada, com construções novas, isoladas em terrenos baldios e, não longe, a cerca de caramanchões murchos.” François Porché, La Vie Douloureuse de Charles Baudelaire, Paris, 1926, p. 119.

[D 1, 3]

Como as forças cósmicas têm apenas um efeito narcotizante sobre o homem vazio e frágil é o que revela a relação dele com uma das manifestações superiores e mais suaves dessas forças: o tempo atmosférico. É muito significativo que justamente esta influência, a mais íntima e mais misteriosa exercida pelo tempo sobre os homens, veio a se tornar o tema de suas conversas mais vazias. Nada entedia mais o homem comum do que o cosmos. Daí resulta a íntima ligação, para ele, entre tempo e tédio. Um belo exemplo de superação irônica desta atitude é a história do inglês spleenático, que certa manhã desperta e dá um tiro na cabeça porque lá fora chove. Ou ainda Goethe: como soube radiografar o tempo em seus estudos meteorológicos, de tal modo que somos tentados a dizer que ele foi levado a esse trabalho apenas para assim poder integrar até mesmo o tempo à sua vida desperta, criativa.

[D 1, 5]

Em 1903, Emile Tardieu publicou em Paris um livro intitulado L’Ennui, no qual procura demonstrar que toda atividade humana é uma tentativa inútil de escapar ao tédio e, ao mesmo tempo, que tudo que é, foi e será, é tão-somente o alimento inesgotável deste mesmo sentimento. Ao se ler isso, poder-se-ia imaginar ter diante de si um grandioso monumento literário: um monumento aere perennius erigido à glória do taedium vitae dos romanos. Contudo, trata-se apenas da ciência auto-suficiente e mesquinha de um novo Homais, que reduz toda grandeza, o heroísmo dos heróis e o ascetismo dos santos a provas de seu descontentamento pequeno-burguês e sem inspiração.

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[D 1, 6]

“Quando os franceses foram à Itália defender os direitos da coroa de França sobre o ducado de Milão e sobre o reino de Nápoles, voltaram maravilhados com as soluções que o gênio italiano havia encontrado para o excessivo calor; e, da admiração pelas galerias, passaram à imitação. O clima chuvoso dessa Paris, tão célebre por suas lamas, sugeriu pilares, que foram uma maravilha do tempo antigo. Teve-se, assim, mais tarde, a Place Royale. Coisa estranha! Foi pelos mesmos motivos que, sob Napoleão, construíram-se as ruas Rivoli, Castiglione e a famosa Rue des Colonnes.” Assim, também o turbante foi importado do Egito. Le Diable à Paris, Paris, 1845, vol. II, pp. 11-12 (Balzac, “Ce qui disparait de Paris”). Quantos anos separam a guerra acima citada da expedição napoleônica à Itália? E onde se situa a Rue des Colonnes?

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[D 1a, 1]

Sob forma de poeira, a chuva consegue vingar-se das passagens. — Sob Luís Filipe, a poeira se depositava até mesmo sobre as revoluções. Quando o jovem Duque de Orléans “desposou a princesa de Mecklenburg, celebrou-se uma grande festa naquele famoso salão de baile, em que se manifestaram os primeiros sintomas da revolução [de 1830]. Quando vieram arrumar o salão para a festa dos jovens nubentes, encontraram-no como a revolução o deixara. Notavam-se ainda no chão os vestígios do banquete militar; viam-se tocos de vela, copos quebrados, rolhas de champanhe; viam-se as insígnias pisoteadas dos gardes du corps e as fitas de gala dos oficiais do regimento de Flandres.” Karl Gutzkow, Briefe aus Paris, Leipzig, 1842, vol. II, p. 87. Uma cena histórica torna-se componente de um panóptico. ■ DioramaPoeira e perspectiva sufocada

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[D 1a, 3]

III jugendstil

A pelúcia como depósito de poeira. Mistério da poeira que brinca ao sol. A poeira e a “sala de visitas”. “Logo após 1840, surgem os móveis franceses totalmente estofados, e com eles o estilo de tapeçarias atinge seu domínio absoluto.” Max von Boehn, Die Mode im XIX Jahrhundert, vol. II, Munique, 1907, p. 131. Outras formas de levantar a poeira: a cauda. “Recentemente retornou também a verdadeira cauda; agora, porém, é erguida e segurada, durante o andar, com o auxílio de um gancho e um cordão, para evitar a inconveniência de varrer a rua.” Friedrich Theodor Vischer, Mode und Zynismus, Stuttgart, 1879, P. 12. ■ Poeira e perspectiva sufocada

[D 1a, 5]

-II- paris ctônica

Um folhetinista dos anos quarenta, ao escrever sobre o tempo atmosférico de Paris, constatou que Corneille só falou das estrelas uma única vez (em Le Cid) e que Racine escreveu apenas uma vez sobre o “sol”. Ele afirma que as estrelas e as flores teriam sido descobertas para a literatura primeiramente na América, por Chateaubriand, e só depois foram transpostas a Paris. (Segundo Victor Méry, “Le climat de Paris”, em Le Diable à Paris, vol. I, Paris, 1845, p. 245.)

[D 1a, 9]

O tempo de chuva na cidade, com toda sua astuta sedução, capaz de nos fazer voltar em sonhos aos primeiros tempos da infância, só é compreensível à criança de uma cidade grande. A chuva faz tudo parecer mais oculto, torna os dias não só cinzentos, mas também uniformes. De manhã à noite pode-se fazer a mesma coisa — jogar xadrez, ler, discutir —. enquanto o sol, de maneira bem diferente, matiza as horas e não faz bem ao sonhador. Por isso, este precisa evitar com astúcia os dias radiantes e, principalmente, levantar-se muito cedo, como os grandes ociosos, os passeadores do porto e os vagabundos: ele precisa estar a postos mais cedo que o sol. Ferdinand Hardekopf, o único verdadeiro decadente que a Alemanha produziu, indicou ao sonhador — na “Ode vom seligen Morgen” (Ode da manhã bem-aventurada), com a qual presenteou Emmy Hennings há muitos anos — as melhores medidas de precaução para dias ensolarados.

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[D 2, 1]

Outras cidades européias acolhem as colunatas em sua fisionomia urbana; Berlim serve de exemplo com o estilo de suas portas monumentais. Característico é especialmente o Hallesches Tor, inesquecível para mim num cartão postal azulado, representando a Praça Belle-Alliance à noite. Era um cartão transparente, e olhando-o contra a luz, iluminavam-se todas as suas janelas exatamente com o mesmo brilho que emanava da lua cheia no alto do céu.

[D 2, 2]

II tédio

“As construções da nova Paris são derivadas de todos os estilos; o conjunto não deixa de ter uma certa unidade, porque todos esses estilos são do gênero tedioso, e do mais tedioso dos tediosos, que é o enfático e o alinhado. Alinhados! Parados! Parece que o Anfião desta cidade é um caporal … / Ele mobiliza uma quantidade de coisas faustuosas, pomposas, colossais: são entediantes; ele mobiliza também uma quantidade de coisas muito feias: estas são igualmente entediantes. / Estas grandes ruas, estes grandes cais, estes grandes edifícios, estes grandes esgotos, sua fisionomia mal copiada ou mal sonhada guarda um não sei quê que cheira a fortuna repentina e irregular. Exalam o tédio.” Veuillot, Les Odeurs de Paris, Paris, 1914, p. 9. ■ Haussmann

[D 2, 3]

II tédio

Pelletan descreve a visita a um rei da Bolsa de Valores, um multimilionário: “Quando entrei no pátio do hotel, um grupo de palafreneiros vestindo coletes vermelhos ocupava-se em escovar meia dúzia de cavalos ingleses. Subi por uma escadaria de mármore, no alto da qual encontrava-se uma enorme luminária dourada, e encontrei no vestíbulo um camareiro de gravata branca e canelas volumosas que me conduziu a uma grande galeria envidraçada. cujas paredes estavam inteiramente decoradas com camélias e plantas de estufa. Uma espécie de tédio secreto pairava no ar; ao primeiro passo, respirava-se um aroma que lembrava o ópio. Passava-se por uma dupla série de barras, sobre as quais havia papagaios de vários países. Eram vermelhos, azuis, verdes, cinzentos, amarelos e brancos; mas todos pareciam sofrer de saudades de sua terra. Ao fim da galeria encontrava-se uma pequena mesa defronte a uma lareira de estilo renascentista: àquela hora, o patrão tomava o desjejum… Após ter eu esperado um quarto de hora, dignou-se a aparecer… Bocejava, estava sonolento, parecia sempre a ponto de dormitar: andava como um sonâmbulo. Seu torpor tinha contaminado as paredes de seu hotel. Seus pensamentos assemelhavam-se a esses papagaios, como se tivessem se soltado e encarnado e ficados presos a um poleiro…”. ■ Intérieur ■ Rodenberg, Paris bei Sonnenschein und Lampenlicht, Leipzig, 1867, pp. 104-105.

[D 2, 4]

No Théâtre des Variétés, Rougemont e Gentil fazem apresentar as Fêtes françaises ou Paris en miniature. Trata-se do casamento de Napoleão I com Marie-Louise e fala-se a respeito das planejadas festas. “Entretanto”, diz uma das personagens, “o tempo não está muito firme”. — Resposta: “Meu amigo, fique tranqüilo, este dia é da escolha do nosso soberano.” Em seguida, entoa uma estrofe que começa assim:

Sabe-se que a seu olhar agudo
O porvir sempre se desvela,
E quando precisamos de bom tempo
Esperamo-lo de sua estrela.

Cit. em Théodore Muret, L’Histoire par le Théâtre – 1789-1851, Paris, 1865, vol. I, p. 262.

[D 2, 6]

“Cada traje serve-se de alguns acessórios com os quais compõe uma bela figura, isto é, que custam muito dinheiro, pois se estragam facilmente, sobretudo porque qualquer gota de chuva os deteriora.” Isto a propósito da cartola. ■ Moda ■ F Th. Vischer, “Vernünftige Gedanken über die jetzige Mode”, em Kritische Gänge, Nova Série, 3º caderno, Stuttgart, 1861, p. 124.

[D 2a, 1]

II o flâneur e a massa

O tédio é um tecido cinzento e quente, forrado por dentro com a seda das cores mais variadas e vibrantes. Nele nós nos enrolamos quando sonhamos. Estamos então em casa nos arabescos de seu forro. Porém, sob essa coberta, o homem que dorme parece cinzento e entediado. E quando então desperta e quer relatar o que sonhou, na maioria das vezes ele nada comunica além desse tédio. Pois quem conseguiria com um só gesto virar o forro do tempo do avesso? E, todavia, relatar sonhos nada mais é do que isso. E não podemos falar das passagens de outro modo. São arquiteturas nas quais revivemos em sonhos a vida de nossos pais, avós, tal qual o embrião dentro do ventre da mãe revive a vida dos animais. A existência nesses espaços decorre sem ênfase, como nos sonhos. O flanar é o ritmo desta sonolência. Em 1839, Paris foi invadida pela moda das tartarugas. É possível imaginar muito bem como as pessoas elegantes imitavam nas passagens, mais facilmente ainda que nos boulevards, o ritmo destas criaturas. ■ Flâneur

[D 2a, 4]

II tédio

O trabalho na fábrica como infra-estrutura econômica do tédio ideológico das classes superiores. “A triste rotina de um infindável sofrimento no trabalho, no qual o mesmo processo mecânico é repetido sempre, assemelha-se ao trabalho de Sísifo; o fardo do trabalho, tal qual a pedra de Sisifo, despenca sempre sobre o operário esgotado.” Friedrich Engels. Die Lage der arbeitenden Klasse in England, 2ª ed., Leipzig, 1848, p. 217 (cit. em Marx. Das Kapital, Hamburgo, 1922, vol. I, p. 388).

[D 2a, 5]

O sentimento de uma “imperfeição incurável” (cf. Les Plaisirs et les Jours, cit. na homenagem de Gide) “na própria essência do presente” foi talvez para Proust o motivo principal de procurar conhecer a sociedade mundana até suas últimas dobras, e talvez seja até mesmo um motivo fundamental das reuniões sociais dos homens em geral.

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[D 2a, 6]

II tédio

Sobre os salões: “Percebiam-se em todas as fisionomias os traços inconfundíveis do tédio, e as conversas eram em geral raras, pacatas e sérias. A dança era vista pela maioria como um trabalho forçado ao qual era preciso submeter-se, por ser de bom-tom.” Mais adiante, a afirmação de “que talvez nas sociedades de nenhuma cidade da Europa se encontrem rostos menos satisfeitos, alegres e vivazes quanto nos salões parisienses; … além disso, em nenhum outro lugar da sociedade se ouvem mais queixas sobre o tédio insuportável do que aqui, tanto por simples modismo quanto por verdadeira convicção”. “Uma conseqüência natural disso é que impera nas reuniões sociais um silêncio e uma calma que seriam consideradas excepcionais nas grandes reuniões em outras cidades.” Ferdinand von Gall, Paris und seine Salons, Oldenburg, 1844, vol. I, pp. 151-153 e 158.

[D 2a, 7]

Deveríamos refletir sobre os pêndulos nos apartamentos a partir das seguintes linhas: “Um certo sentido de leveza, um olhar calmo e despreocupado sobre o tempo que se esvai, um emprego indiferente das horas que passam muito rapidamente — estas são qualidades que favorecem a vida superficial dos salões.” Ferdinand von Gall, Paris und seine Salons, vol. II, Oldenburg, 1845, p. 171.

[D 2a, 8]

Tédio nas cenas de cerimônia representadas nos quadros históricos e o dolce far niente dos quadros de batalhas, com tudo o que reside na fumaça de pólvora. Das imagens de Épinal até a Execução do Imperador Maximiliano do México, de Manet, encontra-se a sempre igual e sempre nova miragem, sempre o vapor no qual surge o Mogreby <?> ou o gênio da garrafa diante dos olhos sonhadores e distraídos dos amantes da arte. ■ Morada de sonho, museus

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[D 3, 1]

“Em resumo, a arte clássica urbana, depois de ter apresentado suas obras-primas, esterilizou- se no tempo dos filósofos e dos fabricantes de sistemas. O século XVIII, que terminava, havia trazido à luz inúmeros projetos; a Comissão dos Artistas os reunira em corpo de doutrina, o Império os aplicava sem originalidade criadora. Ao estilo clássico, flexível e vivo, sucedia o pseudoclássico, sistemático e rígido… O Arco do Triunfo repete a porta Louis XIV, a coluna Vendôme é imitação de Roma, a Madeleine, a Bolsa de Valores e o Palais-Bourbon são templos antigos.” Lucien Dubech e Pierre d’Espezel, Histoire de Paris, Paris, 1926, p. 345. ■ Intérieur

[D 3, 4]

Em vez de passar (vertreiben) o tempo, é preciso convidá-lo (einladen) para entrar. Passar o tempo ou matar, expulsar (austreiben) o tempo: o jogador. O tempo jorra-lhe dos poros. — Carregar-se (laden) de tempo como uma bateria armazena (lädt) energia: o flâneur. Finalmente, o terceiro tipo: aquele que espera. Ele carrega-se (lädt) de tempo e o devolve sob uma outra forma — aquela da espera.

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[D 3, 5]

-II- paris ctônicaII tédio

“Os estratos calcários de formação recente, sobre os quais se localiza Paris, transformam-se em pó com muita facilidade, e este pó, como todo pó calcário, provoca dor particularmente nos olhos e no peito. Um pouco de chuva não adianta absolutamente nada, porque eles absorvem a água rapidamente e a superfície logo fica seca de novo.” “Junte-se a isso a feia e desbotada cor cinzenta das residências, todas construídas com esta pedra calcária porosa, que é extraída perto de Paris; — os telhados de um amarelo pálido, que vão enegrecendo com o passar dos anos; — as altas e largas chaminés que deformam até mesmo os prédios públicos … e que em certas regiões da cidade velha situam-se tão próximas umas das outras que mal se pode olhar através delas.” J. F. Benzenberg, Briefe geschrieben auf einer Reise nach Paris, Dortmund, 1805, vol. I, pp. 112 e 111.

[D 3a, 2]

Máximas da pintura do Império: “Os artistas novos só admitiam o ‘estilo heróico, o sublime’, e o sublime só podia ser alcançado com ‘o nu e o drapeado’… Os pintores deviam procurar suas inspirações em Plutarco ou Homero, em Tito Lívio ou Virgilio, e escolher, de preferência, segundo a recomendação de David a Gros…, ‘temas conhecidos de todos’… Os temas tirados da vida contemporânea eram, por causa do estilo dos trajes, indignos da grande arte’.” A. Malet e P. Grillet, XIX Siècle, Paris, 1919, p. 158. ■ Moda

[D 3a, 4]

O tédio começou a ser visto como uma epidemia nos anos quarenta. Lamartine teria sido o primeiro a ter dado expressão a este mal. Ele tem um papel numa pequena história que trata do famoso comediante Deburau. Certa feita, um grande neurologista foi procurado por um paciente que o visitava pela primeira vez. O paciente queixou-se do mal do século — a falta de vontade de viver, as profundas oscilações de humor, o tédio. “Nada de grave”, disse o médico após minucioso exame. “O senhor apenas precisa repousar, fazer algo para se distrair. Uma noite dessas vá assistir a Deburau e o senhor logo verá a vida com outros olhos.” “Ah, caro senhor”, respondeu o paciente, “eu sou Deburau”.

[D 3a, 6]

II tédio

“A introdução do sistema Mac Adam para a pavimentação dos boulevards deu nascimento a inúmeras caricaturas. Cham mostra os parisienses cegos com a poeira e propõe erigir … uma estátua com a inscrição: ‘A Macadam, dos oculistas e comerciantes de óculos, em reconhecimento!’ Outras representam os transeuntes suspensos em pernas de pau, percorrendo assim os pântanos e as poças d’água.” Paris sous la Republique de 1848: Exposition de la Bibliothèque et des Travaux Historiques de la Ville de Paris, 1909 [Poëte, Beaupaire, Clouzot, Henriot], p. 25.

[D 4, 1]

II o heroi-III- o dândi

“Somente a Inglaterra podia ter produzido o dandismo; a França é tão incapaz de produzir seu equivalente quanto sua vizinha o é de oferecer o equivalente de nossos … ‘leões’, tão apressados em agradar quanto os dândis em desprezar … D’Orsay … agradava naturalmente e apaixonadamente a todo o mundo, mesmo aos homens, enquanto que os dândis só agradavam desagradando… Do leão ao pretendente a dândi há um abismo; mas quão maior é o abismo entre o pretendente a dândi e o miserável!” Larousse, Grand Dictionnaire Universel du Dix-neuvième Siècle, vol. VI, Paris, 1870, p. 63 (verbete “art dandy”).

[D 4, 4]

O mundo no qual nos entediamos “Mas se nos entediamos, e daí? Que influência isso pode ter?” — “Que influência! … que influência o tédio tem sobre nós? Ela é enorme! … Considerável! Veja, o francês tem um horror pelo tédio levado até a veneração. Para ele, o tédio é um deus terrível, que tem por culto a duração. Ele não compreende a seriedade senão sob essa forma.” Édouard Pailleron, Le Monde où l’On sEnnuie (1881), Ato I, cena 2 (em É. Pailleron, Théâtre Complet, vol. III, Paris, 1911, p. 279).

[D 4, 5]

II tédio

Michelet “faz uma descrição muito inteligente e piedosa da condição dos primeiros operários especializados por volta de 1840. Eis ‘o inferno do tédio’ nas tecelagens: ‘Sempre, sempre, sempre é a palavra invariável que retumba em nosso ouvido com a rotação automática, que faz tremer o assoalho. Ninguém jamais se habitua a isso.’ Muitas vezes as observações de Michelet (por exemplo aquelas sobre o devaneio e os ritmos dos ofícios) precedem intuitivamente as análises experimentais dos psicólogos modernos.” Georges Friedmann, La Crise du Progrès, Paris, 1936, p. 244. [A citação é extraída de Michetet, Le Peuple, Paris, 1846, p. 83.]

[D 4a, 1]

A Vida Parisiense: “Na carta de recomendação escrita pelo Barão Stanislas de Frascata para seu amigo Gondremarck, dirigida a Metella, Paris assemelha-se a um souvenir em uma redoma de vidro. O missivista, preso à terra natal, queixa-se que em seu ‘frio país’ sente saudades dos banquetes regados a champanhe, do boudoir azul-celeste de Metella, dos jantares, das canções, da embriaguez. Paris esplende clara a seus olhos: um lugar onde as diferenças de classe se anulam, uma cidade repleta de calor meridional e vida fervilhante. Metella lê a carta de Frascata, e, enquanto lê, a música emoldura a pequena e brilhante imagem da memória com uma melancolia, como se Paris fosse o paraíso perdido, e com uma bem-aventurança, como se fosse a terra prometida. À medida que a ação se desenvolve, advém a impressão irrefutável de que esta imagem começa a tornar-se viva.” S. Kracauer, Jacques Offenbach und das Paris seiner Zeit, Amsterdam, 1937, pp. 348-349.

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[D 4a, 2]

-III- -antiguidade parisiense-

“O Romantismo culmina numa teoria do tédio; o sentimento moderno da vida, numa teoria do poder, ou, pelo menos, da energia… Com efeito, o Romantismo marca a tomada de consciência pelo homem de um feixe de instintos que a sociedade está fortemente interessada em reprimir, mas ele manifesta em grande parte o abandono da luta… O escritor romântico … volta-se para … uma poesia de refúgio e de evasão. A tentativa de Balzac e de Baudelaire é exatamente inversa e tende a integrar na vida os postulados que os Românticos se resignavam em realizar unicamente no plano da arte… Nisso seu empreendimento era muito próximo do mito, que significa sempre um acréscimo do papel da imaginação na vida”. Roger Caillois, “Paris, mythe moderne”, (Nouvelle Revue Française, XXV, 284, 1° de maio de 1937, pp. 695 e 697).

[D 4a, 4]

II o flâneur e a massa-III- o dândi

Baudelaire no ensaio sobre Guys: “O dandismo é uma instituição vaga, tão bizarra quanto o duelo; muito antiga, pois dela César, Catilina, Alcibíades nos oferecem exemplos brilhantes: muito geral, pois Chateaubriand encontrou-a nas florestas e às margens dos lagos do Novo Mundo.” Baudelaire, L’Art Romantique, Paris, p. 91.

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[D 5, 1]

II o heroi-III- o dândi

O capítulo referente a Guys em L’Art Romantique, sobre os dândis: “Todos são representantes … dessa necessidade, hoje muito rara, de combater e destruir a trivialidade… O dandismo é o último brilho de heroísmo na decadência; e o tipo do dândi, encontrado pelo viajante na América do Norte, não enfraquece em nada essa idéia, porque nada nos impede de supor que as tribos que chamamos de selvagens sejam remanescentes de grandes civilizações desaparecidas… Seria preciso dizer que Monsieur G., quando desenha um de seus dândis no papel, confere-lhe sempre seu caráter histórico, até mesmo lendário, ousaria dizer, se não fosse questão do tempo presente e de coisas consideradas geralmente como brincadeira?” Baudelaire, L’Art Romantique (ed. Hachette, tomo III), Paris, pp. 94-95.

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[D 5, 3]

II o flâneur e a massa

A multidão aparece como supremo remédio contra o tédio no ensaio sobre Guys: “‘Todo homem’, disse certa vez Monsieur G., numa dessas conversas que ele ilumina com um olhar intenso e com um gesto evocativo, ‘todo homem … que se entedia no meio da multidão é um tolo! Um tolo! E eu o desprezo!'” Baudelaire, L’Art Romantique, p. 65.

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[D 5, 7]

-III- progresso

Contrapartida da visão de mundo de Blanqui: o universo é um lugar de catástrofes permanentes.

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[D 5a, 6]

III eterno retorno

O último texto de Blanqui, escrito em sua última prisão, permaneceu a meu ver totalmente despercebido até hoje. Trata-se de uma especulação cosmológica. É preciso admitir que, ao primeiro olhar, o texto parece banal e de mau gosto. Entretanto, as desajeitadas reflexões de um autodidata são apenas o prelúdio de uma especulação que não se imaginaria de modo algum encontrar neste revolucionário. Na medida em que o inferno é um objeto teológico, esta especulação pode ser denominada de teológica. A visão cósmica que expõe Blanqui, tomando seus dados à ciência natural mecanicista da sociedade burguesa, é uma visão do inferno — e é, ao mesmo tempo, um complemento da sociedade que Blanqui, no fim de sua vida, foi obrigado a reconhecer como vitoriosa. O que causa um choque é a ausência de qualquer traço de ironia nesse esboço. É uma rendição incondicional, porém, ao mesmo tempo, a acusação mais terrível contra uma sociedade que projeta no céu esta imagem do cosmos como imagem de si mesma. O texto, estilisticamente muito marcante, contém as mais notáveis relações tanto com Baudelaire quanto com Nietzsche. (Carta de 6 de janeiro de 1938 a Horkheimer).

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[D 6, 1]

III eterno retorno

Extraído de L’Eternité par les Astres, de Blanqui: “Qual o homem que não se encontra, às vezes, em presença de duas carreiras? Aquela da qual ele se desvia lhe daria uma vida bem diferente, preservando-lhe ao mesmo tempo a mesma individualidade. Uma conduz à miséria, à vergonha, à servidão. A outra leva à glória, à liberdade. Aqui, uma mulher encantadora e a felicidade; lá, cólera e desolação. Falo pelos dois sexos. Quer se a tome ao acaso ou por escolha, não importa: não se escapa da fatalidade. Mas a fatalidade não roca o infinito, que não conhece alternativa e tem lugar para tudo. Existe uma terra em que o homem segue a estrada desdenhada na outra pelo sósia. Sua existência se duplica, um globo para cada uma, depois se bifurca uma segunda, uma terceira vez, milhares de vezes. Ele possui assim sósias completos e inúmeras variantes de sósias que se multiplicam e representam sempre sua pessoa, mas não tomam senão pedaços de seu destino. Tudo o que poderíamos ter sido aqui em baixo, nós o somos em alguma outra parte. Além de nossa existência inteira, do nascimento à morte, que vivemos numa multidão de terras, nós a vivemos em outras terras em mil edições diferentes.” Cit. em Gustave Geffroy, L’Enfermé, Paris, 1897, p. 399.

[D 6, 2]

III eterno retorno

Extraído do final da Eternité par les Astres: “O que escrevo neste momento, numa cela do Fort du Taureau, eu o escrevi e o escreverei por toda a eternidade, à mesa, com uma pena, vestido como estou agora, em circunstâncias inteiramente semelhantes.” Cit. em Gustave Geffroy, L’Enfermé, Paris, 1897, p. 401. Logo em seguida, Geffroy: “Ele escreve assim seu destino no número sem fim dos astros, e em todos os instantes da duração. Sua cela se multiplica até o incalculável. Ele é, no universo inteiro, o encarcerado que ele é nesta terra, com sua força revoltada, seu pensamento livre.”

[D 6a, 1]

III eterno retorno

Extraído do final de L’Eternité par les Astres: “Na hora presente, a vida inteira de nosso planeta, do nascimento à morte, é vivida em parte aqui e em parte lá, dia a dia, em miríades de astros-irmãos, com todos os seus crimes e suas desgraças. O que chamamos de progresso está enclausurado em cada terra e desaparece com ela. Sempre e em todo lugar, no campo terrestre, o mesmo drama, o mesmo cenário, sobre o mesmo palco estreito, uma humanidade barulhenta, enfatuada de sua grandeza, acreditando ser o universo e vivendo em sua prisão como numa imensidão, para logo desaparecer com o globo que carregou com o mais profundo desprezo o fardo de seu orgulho. Mesma monotonia, mesmo imobilismo nos astros estrangeiros. O universo se repete, sem fim, e patina no mesmo lugar.” Cit. em Gustave Geffroy, L’Enfermé, Paris, 1897, p. 402.

[D 6a, 3]

III eterno retorno

Misantropia de Blanqui: “As variações começam com os seres animados que têm vontades, dito de outra forma, caprichos. Desde que os homens fazem intervenções, a fantasia intervém com eles. Não que eles possam afetar muito o planeta… Sua turbulência jamais perturba seriamente o andamento natural dos fenômenos físicos, mas desequilibra a humanidade. É, preciso, pois, prever essa influência subversiva que … dilacera as nações e arruina os impérios. É claro que essas brutalidades acontecem sem sequer arranhar a epiderme terrestre. O desaparecimento dos perturbadores não deixaria vestígios de sua presença, que eles julgam soberana, e seria suficiente para devolver à natureza sua virgindade muito pouco atingida.” Blanqui, L’ Eternité par les Astres, pp. 63-64.

[D 7; D 7a]

III eterno retorno

Capítulo final (VIII — “Résume”) de L’Eternité par les Astres, de Blanqui: ‘O universo inteiro é composto de sistemas estelares. Para criá-los, a natureza tem apenas cem corpos simples a sua disposição. Apesar da vantagem prodigiosa que ela sabe tirar desses recursos, e do número incalculável de combinações que eles oferecem à sua fecundidade, o resultado é necessariamente um número finito, como o dos próprios elementos; para preencher sua extensão, a natureza deve repetir ao infinito cada uma de suas combinações originais ou tipos. / Todo astro, qualquer que seja, existe portanto em número infinito no tempo e no espaço, não apenas sob um de seus aspectos, mas tal como se encontra em cada segundo de sua duração, do nascimento à morte. Todos os seres distribuídos em sua superfície, grandes ou pequenos, vivos ou inanimados, partilham o privilégio dessa perenidade. / A terra é um desses astros. Todo ser humano é, pois, eterno em cada um dos segundos de sua existência. O que escrevo neste momento, numa cela do Fort du Taureau, eu o escrevi e o escreverei por toda a eternidade, à mesa, com uma pena, vestido como estou agora, em circunstâncias inteiramente semelhantes. Assim para cada um. / Todas essas terras se abismam, uma após a outra, nas chamas renovadoras, para delas renascer e recair ainda, escoamento monótono de uma ampulheta que se vira e se esvazia eternamente a si mesma. Trata-se do novo sempre velho, e do velho sempre novo. / Os curiosos em relação à vida extraterrestre poderão, entretanto, sorrir diante de uma conclusão matemática que lhes conceda não apenas a imortalidade, mas a eternidade? O número de nossos sósias é infinito no tempo e no espaço. Em sã consciência, não se poderia exigir mais. Esses sósias são de carne e osso, até mesmo de calças e paletó, de crinolina e de coque. Não são fantasmas, são a atualidade eternizada. / Eis, entretanto, uma grande falha: não há progresso. Infelizmente! Não são reedições vulgares, repetições. Assim são os exemplares dos mundos passados, e assim também os dos mundos futuros. Somente o capítulo das bifurcações permanece aberto à esperança. Não nos esqueçamos que tudo o que poderíamos ter sido aqui em baixo, nós o somos em alguma outra parte. O progresso aqui embaixo é apenas para nossos descendentes. Eles têm mais sorte que nós. Todas as coisas belas que o nosso globo verá, nossos futuros descendentes já as viram, vêem-nas neste momento e as verão sempre, é claro, sob a forma de sósias que os precederam e que os sucederão. Filhos de uma humanidade melhor, eles já nos ultrajaram muito e nos vaiaram muito sobre as terras mortas, passando por elas depois de nós. Continuam a nos fustigar sobre as terras vivas de onde nós desaparecemos. e nos perseguirão para sempre com seu desprezo sobre as terras a nascer. / Eles e nós — e todos os hóspedes de nosso planeta — renascemos prisioneiros do momento e do lugar que os destinos nos designam na série de suas metamorfoses. Nossa perenidade é um apêndice da sua. Não somos senão fenômenos parciais de suas ressurreições. Homens do século XIX, a hora de nossas aparições está para sempre fixada e nos reconduz sempre os mesmos, na melhor hipótese com a perspectiva de variantes felizes. Nada aí que satisfaça muito a sede de algo melhor. O que fazer? Não procurei meu prazer, procurei a verdade. Não há aqui revelação nem profeta, mas uma simples dedução da análise espectral e da cosmogonia de Laplace. Essas duas descobertas nos fazem eternos. Seria um ganho? Aproveitemos. Seria uma mistificação? Resignemo-nos / … / No fundo, é melancólica essa eternidade do homem pelos astros, e mais triste ainda é esse seqüestro dos mundos irmãos pela inexorável barreira do espaço. Tantas populações idênticas que passam sem ter suspeitado de sua mútua existência! Pois bem! Nós a descobrimos, enfim, no século XIX. Mas quem desejara acreditar nisso? / E depois, até aqui, o passado para nós representava a barbárie, e o futuro significava progresso, ciência, felicidade, ilusão! Esse passado viu desaparecer, sobre todos os nossos globos-sósias, as mais brilhantes civilizações, sem deixar um rastro, e elas desaparecerão ainda sem deixar outros. O futuro reverá sobre bilhões de terras a ignorância, as tolices, as crueldades de nossas velhas eras! / Na hora presente, a vida inteira de nosso planeta, do nascimento à morte, é vivida em parte aqui e em parte lá, dia a dia, em miríades de astros- irmãos, com todos os seus crimes e suas desgraças. O que chamamos de progresso está enclausurado em cada terra e desaparece com ela. Sempre e em todo lugar, no campo terrestre, o mesmo drama, o mesmo cenário, sobre o mesmo palco estreito uma humanidade barulhenta, enfatuada de sua grandeza, acreditando ser o universo e vivendo em sua prisão como numa imensidão, para logo desaparecer com o globo que carregou com o mais profundo desprezo o fardo de seu orgulho. Mesma monotonia, mesmo imobilismo nos astros estrangeiros. O universo se repete, sem fim, e patina no mesmo lugar. A eternidade perfaz imperturbavelmente ao infinito as mesmas representações.” A. Blanqui, L’Eternité par les Astres: Hypothèse Astronomique, Paris, 1872, pp. 73-76. O trecho que falta detém-se no “consolo” proporcionado pela idéia de que os entes queridos que se foram desta terra fazem companhia, enquanto sósias, nesta mesma hora, ao nosso sósia, num outro planeta.

[D 8, 1]

III eterno retorno

“Pensemos este pensamento em sua forma mais terrível: a existência, tal como ela é, sem sentido ou objetivo, porém, repetindo-se inevitavelmente, sem um final, no nada: ‘o eterno retorno‘. [p. 45] … Negamos objetivos finais: se a existência tivesse um, este deveria ter sido atingido.” Friedrich Nietzsche, Gesammelte Werke, Munique, 1926, vol. XVIII, Der Wille zur Macht (A vontade de Poder), Livro I, p. 46.

[D 8, 3]

III eterno retorno

“Contudo, o velho hábito de imaginar um objetivo para cada acontecimento é tão poderoso que o pensador precisa se esforçar para não pensar a falta mesma de objetivo do mundo como intencional. Esta idéia — de que, portanto, o mundo evita intencionalmente um objetivo … — impõe-se a todos aqueles que querem atribuir ao mundo a faculdade da eterna novidade [p. 369] … O mundo, enquanto força, não deve ser pensado como ilimitado, pois ele não pode ser pensado dessa forma… Falta, portanto, ao mundo também a faculdade da eterna novidade.” Nietzsche, Gesammelte Werke, vol. XIX, Munique, 1926, p. 370 (Der Wille zur Macht, Livro IV).

[D 8a, 1]

III eterno retorno

“Se o mundo pode ser pensado como uma grandeza determinada de força e como um número determinado de centros de força — e qualquer outra representação seria … inútil — resulta daí que ele deve passar por um número calculável de combinações no grande jogo de dados de sua existência. Num tempo infinito, qualquer combinação possível seria atingida um dia; além disso, ela seria atingida infinitas vezes. E como entre cada combinação e seu retorno seguinte precisariam ter sido percorridas todas as combinações ainda possíveis … seria provado com isso um círculo de séries absolutamente idênticas… Esta concepção não é simplesmente mecanicista; pois se o fosse, ela não determinaria um retorno infinito de casos idênticos, e sim um estado final. Porque o mundo não o atingiu, o mecanicismo deve nos parecer uma hipótese incompleta e apenas provisória.” Nietzsche, Gesammelte Werke, Munique, 1926, vol. XIX, p. 373 (Der Wille zur Macht, Livro IV).

[D 8a, 4]

III eterno retorno

Sobre o problema da Modernidade e Antigüidade: “Esta existência que se tornou inconstante e absurda e este mundo que se tornou inconcebível e abstrato se conjugam na vontade do eterno retorno, do igual como tentativa de repetir, no auge da modernidade, no símbolo, a vida dos gregos no cosmos vivo do mundo visível.” Karl Liwith, Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkunft des Gleichen, Berlim, 1935, p. 83.

[D 9, 2]

III eterno retorno

A idéia do eterno retorno faz surgir magicamente a fantasmagoria da felicidade a partir da miséria dos anos da modernização alemã. Esta doutrina é uma tentativa de conciliar as tendências contraditórias do prazer: a da repetição e da eternidade. Este heroísmo é uma contrapartida ao heroísmo de Baudelaire, que faz surgir magicamente a fantasmagoria da modernidade a partir da miséria do Segundo Império.

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[D 9, 4]

III eterno retornoIII jugendstil

Crítica à doutrina do eterno retorno: “Como estudioso das ciências naturais, … Nietzsche é um diletante que filosofa, e como fundador de religião, um ‘híbrido de doença e vontade de poder’.” [Prefácio a Ecce Homo], (p. 83) “Toda esta doutrina parece ser nada mais que um experimento da vontade humana e uma tentativa de perpetuar o nosso fazer e não fazer, um substituto ateísta da religião. A isto corresponde o estilo da prédica e a composição de Zaratustra, que muitas vezes imita o Novo Testamento nos mínimos detalhes.” (pp. 86- 87) Karl Löwith, Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkunft des Gleichen, Berlim, 1935.

[D 9a, 1]

Extraído de “Les étoiles” (As estrelas), de Lamartine:

Então esses globos de ouro, essas ilhas de luz,
Que a sonhadora pálpebra procura por instinto,
Jorram aos milhares da sombra fugidia,
Como um pó de ouro sobre os passos da noite;
E o sopro da tarde que voa sobre seu rastro
Semeia-os em turbilhão no brilhante espaço.
Tudo o que procuramos, o amor, a verdade,
Esses frutos caídos do céu, de que a terra provou,
Em vossos brilhantes climas que o olhar inveja
Nutrem para sempre os filhos da vida;
E o homem, um dia talvez, entregue a seu destino,
Encontrará em vossa casa tudo o que perdeu.

Lamartine, Œuvres Complètes, vol. I, Paris, 1850, pp. 221 e 224 (Méditations). A meditação termina com um sonho, no qual Lamartine se imagina transformado em estrela, entre as estrelas.

[D 9a, 2]

Extraído de “L’infini dans les cieux” (O infinito nos céus), de Lamartine:

E o homem, entretanto, este inseto invisível,
Rastejando nos sulcos de um globo imperceptível,
Mede desses fogos as grandezas e os pesos,
Designa-lhes seu lugar, e sua estrada, e suas leis,
Como se, em suas mãos que o compasso fere,
Ele rolasse esses sóis como grãos de areia!
“E Saturno obscurecido por seu anel longínquo!”

Lamartine, Œvres Complètes, Paris, 1850, pp. 81-82 e 82 (Harmonies Poétiques et Religieuses).

[D 9a, 3]

Deslocamento do inferno: “E, finalmente, qual é o lugar das penas? Todas as regiões do universo com uma condição análoga á da Terra, e piores ainda.” Jean Reynaud, Terre et Ciel, Paris, 1854, p. 377. O livro, extremamente insensato, quer fazer passar seu sincretismo teológico, sua philosophie religieuse, como a nova teologia. A eternidade dos castigos infernais é uma heresia: “A antiga trilogia Terra, Céu, Inferno encontra-se, pois, finalmente reduzida à dualidade druídica Terra e Céu.” (p. XIII)

[D 10, 1]

III eterno retorno

Primeira alusão à doutrina do eterno retorno no final do quarto livro de Die fröhliche Wissenschaft (A Gaia Ciência): “E se, um dia ou uma noite qualquer, um demônio viesse sorrateiramente atrás de ti, perseguindo-te na tua mais solitária solidão, e te dissesse: ‘Esta vida que estás vivendo agora e já viveste terá que ser vivida por ti mais uma vez e ainda mais incontáveis vezes; nada nela será novo, ao contrário, cada dor e cada prazer, cada pensamento e cada suspiro e tudo o que existe de indescritivelmente pequeno e grande em tua vida terá de retornar, tudo na mesma sucessão e seqüência — e assim também esta aranha e este luar por entre as árvores, e igualmente este instante e eu mesmo. A eterna ampulheta da existência será sempre virada de novo — e tu com ela, grãozinho de poeira!’ — Não irias tu amaldiçoar o demônio que assim falasse? Ou terias tu vivido um instante formidável em que irias responder-lhe: ‘tu és um deus e nunca ouvi coisas mais divinas!” Cit. em Löwith, Nietzsche Philosophie der ewigen Wiederkunft des Gleichen, Berlim, 1935, pp. 57-58.

[D 10, 4]

Confrontar L’Eternité par les Astres com o espírito de 1848, que anima Terre et Ciel, de Reynaud. A esse respeito, Cassou: “O homem, descobrindo seu destino terrestre, tem uma espécie de vertigem, e não pode, de imediato, conformar-se apenas com esse destino terrestre. Ele precisa associá-lo à mais vasta imensidão possível de tempo e de espaço. Em sua dimensão mais extensa, ele quer se embriagar de ser, de movimento, de progresso. Somente então ele pode, com toda confiança e com todo orgulho, pronunciar esta sublime palavra do mesmo Jean Reynaud: ‘Durante muito tempo pratiquei o universo’.” “Não encontramos nada no universo que não sirva para nos elevar, e não podemos nos elevar realmente senão fazendo uso daquilo que o universo nos oferece. Os próprios astros, em sua sublime hierarquia, não são senão os degraus superpostos, pelos quais subimos progressivamente até o infinito.” Jean Cassou, Quarante-huit, Paris, 1939, pp. 49 e 48.

[D 10a, 4]

A essência do acontecimento mítico é o retorno. Nele está inscrita, como figura secreta, a inutilidade gravada na testa de alguns heróis dos infernos (Tântalo, Sísifo ou as Danaides). Retomando o pensamento do eterno retorno no século XIX, Nietzsche assume o papel daquele em quem se consuma de novo a fatalidade mítica. (A eternidade das penas infernais talvez tenha privado a idéia antiga do eterno retorno de sua ponta mais terrível. A eternidade de um ciclo sideral é substituída pela eternidade dos sofrimentos.)

[D 10a, 5]

A crença no progresso, em sua infinita perfectibilidade — uma tarefa infinita da moral —, e a representação do eterno retorno são complementares. São as antinomias indissolúveis a partir das quais deve ser desenvolvido o conceito dialético do tempo histórico. Diante disso, a idéia do eterno retorno aparece como o “racionalismo raso”, que a crença no progresso tem a má fama de representar, sendo que esta crença pertence à maneira de pensar mítica tanto quanto a representação do eterno retorno.